quarta-feira, março 28, 2007

Palhaços



Todos olham seu nariz vermelho, redondo, brilhante. Ele anda trôpego e confuso. Até ver outro nariz como o seu no rapaz da esquina, adiante outro, na moça da farmácia, adiante a menina das flores, e outros mais.

Seria mentira dizer que esse dia ficou marcado, apesar da chuva, apesar da indiferença dissimulada dos transeuntes, apesar da falta de graça dos palhaços do inusitado.

E porque há gente gargalhando quando ele passa, há um silêncio cúmplice entre os divertidos solitários dessa cidade fantasma, há pessoas cinzentas, há aspereza e solidão, refletindo a inutilidade dos esforços, nessa luta sem sentido que tentei te explicar.




Mas eu sei que você entende, o que é esse desvanecer pingado.


quinta-feira, março 22, 2007

Agrião


Parece que fantasmas surgem com um saco vazio na minha direção, o que será que eles ainda querem?


Refletida na íris a imagem violenta da morte. Tomates cereja maduros.


Todo dia eu busco um pretexto que justifique o assassinato do lavador de carros, ele tinha um irmão gêmeo que sobreviveu, receio que hoje, apenas eu e esse irmão dele - se ainda for vivo, tenhamos uma lembrança do lavador de carros, que não tinha nome e tinha olhos drogados na paisagem da calçada.


O amante me traz damascos secos e champagne, mas no fundo do seu olhar eu vejo medo.


Parentes próximos temem gelados pela passagem dos dias, apavorados com a possibilidade de fazerem aniversário.


Uma noite na enfermaria do hospital e se descobre que a vida é mesmo uma festa, com ou sem nicotina.


Na oficina do diabo teço histórias e planejo as saladas, quem as come ignora as idéias que geraram tomates e pepinos, agrião, molho de iogurte e pingo de catchup.


Não culpe um sujeito, se o vir como um agrião, assim amargo, é muito catchup nessa história.

domingo, março 11, 2007

Indigência fashion




Esta história que me persegue há dias, antes que eu tenha outro compromisso, preciso narrá-la, de maneira que se algum dia, estando eu onde estiver, alguém conheça surpreso à hilária e pungente história da menina de um vestido só.


Ela diz que eu minto e que dos sete anos, aos dias de hoje, ela teve três lindos vestidos, talvez mais, ocorre que também teve um de gaze cor de rosa e tal e coisa. Mas isso aconteceu na idade de quinze anos e já não vale mais.

Seu verdadeiro desejo ser proprietária de um farto guarda-roupas onde muitos vestidos dormissem perfumados e bem passados, aguardando apenas seu desejo de vesti-los. A realidade é que durante a semana alternava o uniforme puído da escola, que usava o dia inteiro, e camisolas que surgiam do nada.


De repente um par de botas, para descansar os sapatinhos boneca de couro marrom. Na verdade ganhara, por ocasião de uma grave doença, duas botinhas que tratava com paixão e capricho.

Mas ela insiste que eu conte do vestido. Era marrom e bege, reivindicado na passagem do seu aniversário que todo mundo esquecia... Espere. Ela começa a computar riquezas e lembra seu “sono leve”, presente metaforicamente surpreendente que a mãe lhe dera. Mas o vestido indiano permaneceu na sua fantasia. Houve então uma calça de lã, blusas de linho, e alguns sapatos de que se lembrava.

Quando houve um namorado ele ficava contabilizando suas roupas novas e era muito divertido, porque já se odiavam e começaram a computar os itens da moda que ambos iam acumulando para seduzir o outro e que produzia efeito contrário.

Pronto: lembra um vestido de linho azul com excelente caimento, mas que não era dela e só pôde usa-lo uma vez e devolveu rápido. Temia se apaixonar por ele e em conseqüência desse amor fazer alguma loucura... Queria por demais possuí-lo... Era um convite a um assassinato, um desejo incontível de furto ou roubo. Sua formação cristã fê-la lavá-lo, passa-lo e devolvê-lo com exagerada urgência.

É muito chato contar que um dia uma menina de sete anos teve só um vestido que era branco no corpete com umas aplicações combinando com a saia e durante uns três anos ela só usava o vestido único, que na sua memória é objeto de ódio familiar, que revelava sua pobreza, enquanto nas reuniões de amiguinhas e eventos familiares ela desfilava solitária com ele, que no frigir dos ovos deixou uma indigência em sua imagem, um apetite por fazendas e linhas e máquinas de toda sorte, que pudessem fazer esquecer a orfandade e o desamparo refletidos em sua história de um tempo eternidade em que tinha um vestido só.


E mulher feita ganhou enfim seu vestido branco, bordado de pérolas em flores que abria seu horizonte à muitas novas vestimentas, e soava como um pedido de desculpas e uma redenção.

sexta-feira, março 09, 2007

A gaiola e as flores


A gaiola é de palha trançada, a gaiola é uma metáfora engraçada, a gaiola é fora de moda.


A língua da cobra é bifurcada, inquieta, curiosa, venosa.


No fundo da gaveta da penteadeira guardo um olho de boi, vegetal, cheio de benzeções e mandingas. Isso é um segredo, ou era.


Animais no trânsito, souvenirs de momentos insosos, ecos de frustrações e asperezas.


Acordos descumpridos, contratos rompidos, um alívio, nenhuma dor. Quem ler isso entenda que aqui não se trata de dor, porque há ceticismo e constatações apenas.


E eu atendo pedidos de socorro, eu entendo mulheres, eu vivo o mundo cão. Então, fico bem com meu desejo de entendimento, que é insistente e tem ouvidos caninos. E penso num sujeito aparentemente implacável no texto que é perversinho e divertido. Mas ontem ele falou com singela gentileza: flores, Juquinha, mulheres/flores...




quinta-feira, março 01, 2007

O doce







Prática toma muito tempo, tempo devia ser sonhado, música e imagem. Real devia não passar de uma mentira, literalmente. Para não termos que nos deparar com a simplicidade tosca dos fatos. A mediocridade imperativa da humanidade. Onde mora a genialidade, essa farsa burguesa que inventaram para justificar a destrutividade dos seres.



Quando a grosseria é rizível, o desprezo uma virtude, aí anda um equívoco contagioso.


Bom mesmo era essa terra toda vazia, os rios e as cachoeiras desabitados das pessoas e bytes, dinheiros e posses, do falso colorido da prosperidade urbana, do cheiro pútrido nas ruas, seus desafios e semanas.



Como um cristal quebrado, gosto de mudar de lado às vezes, vendo o que não se encaixa e gostando da diferença, por capricho e excentricidade, gozando liberdade de solidão. Isso ninguém tira de nós, o desentendimento intrínseco.






"O que um dia eu vou saber,

não sabendo eu já sabia."



Guimarães Rosa




não sou criança e ninguém rouba meu doce de mim!